Nosso destaque vip literário miguelalvense: Escritor Frederico Rebelo com suas magníficas crônicas!!

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LITERATURA EM DESTAQUE
POR COLUNISTA SOCIAL NILO ARAÚJO
Em 16 de  fevereiro  de 2021
O MENDIGO DO LIXÃO
I
  A chuva está chegando e tenho que montar minha casa de hoje. Não estou disposto, ainda assim não há como passar a noite sem um esconderijo, as moscas me atormentam e confabulam com os pernilongos, já as incontáveis mutucas, espalham-se por todo aterro. O dia foi quente, o vento omisso. O dia de sol escaldante pelo menos colaborou para que os papelões secassem e o chão lamacento ficasse menos escorregadio. Já é noite e não há como fugir dessa realidade de todos os dias. Escolhi na mata e trouxe alguns gravetos de arvores para a construção improvisada, guardo comigo alguns metros quadrados de uma velha lona, descartada por um caminhoneiro, uma lona velha e furada, que serve conjuntamente com alguns restos de papelões, para minha moradia que reconstruo todos os dias. Minha pele com o tempo está escurecida e velha, gordurosa, essa condição parece ter coberto todo meu corpo, bom durante a noite, sinto-me aquecido, mas durante o dia a segunda pele traz mal estar e vergonha por causa dos odores. Hoje não tomarei banho, não será possível, não tive disposição para encontrar uma pessoa que me permitisse, ou um lugar com água farta, ainda que fosse uma lagoa.
A vida sozinho, em condições subumanas nos faz perceber que a carne e espirito têm que ser parceiros até o fim.
II
  Quase meia noite, e a chuva fina não invadiu o barraco, a calmaria tomou conta do lixão. Alguns roedores fazem o plantão em busca de comida, rasgando sacos plásticos cheios de restos. Fazem grande barulho. Com a chuva, o mal cheiro do lixão diminui, exala menos o cheiro de podre e mais o cheiro de terra molhada e de madeira antiga, de roupas velhas, da ferrugem. Hoje colhi restos de pães e pizzas, verduras mortas que se transformaram no jantar. Tenho um rato de estimação, digo de estimação porque visita minha barraca todos os dias e dividimos o jantar, ele parece velho demais para conseguir sozinho o alimento. Pensei em dar um nome, mas desisti da ideia porque considerei muito perigosa, pois é com o nome que nasce o afeto e eu que já não sou mais um ser humano pleno, não devo cair no erro de me apegar. Expliquei isso ao animal, durante o jantar num certo dia e, ele não pareceu ter ficado chateado. Dessa forma o rato ficou sendo chamado de Rato. Quando eu vivia em sociedade sofri muito com meus sentimentos e hoje que conquistei a liberdade não posso me privar dela, posto que hoje não tenho nada mais que a vida e a paz.
Agora venho me apresentar, chamo-me Francisco, sim esse é meu nome, tenho certeza, aliás uma das poucas certezas que disponho. Sobrenome eu não tenho pois se não lembro não tenho. Encontrei outro dia um espelho e fiquei eufórico para ver a minha imagem, mas me decepcionei, ali encontrei a imagem de um velho, não poderia ser eu.
É tudo muito confuso. Eu deixo de existir para os outros quando não recordo de quem sou. Quando não me reconheço.
Sei que estive doente por longos anos, como poderia esquecer?
III
  Monto a barraca sempre às margens do lixão, fora da circulação de pessoas e veículos. Durante o dia, pela manhã especialmente, é o melhor horário de coletar alimentos. Outro dia fiquei intrigado e até desconfiado por encontrar uma enorme melancia, uma fruta nova, desperdiçada no aterro, pessoalmente não vejo com bons olhos que se mande para o lixão comida em tão perfeito estado, própria para o consumo humano. Naqueles mesmos dias encontrei bolachas, cereais, frutas tudo nas mesmas condições, era muito e pensei em dividir, mas apenas eu estava na coleta e não tinha com quem dividir, senti-me como um criminoso, desperdiçando tanta comida, o jeito foi dividir com o Rato que preferiu os alimentos mais calóricos e eu as frutas e verduras pois não posso correr o risco de adoecer, não tenho plano de saúde, nem cartão do sus, e também eu sei que não seria atendido com essas roupas e esse corpo em velada decomposição.
 Aqui, o lixão, tornou-se meu habitat, estou integrado a este ambiente, o tempo vem apagando minhas memorias, na verdade me presenteando com essa benção. Vou confessar: tenho outro amigo, esse é secreto, ele não se apresenta, ouço seus conselhos e ele me faz companhia nas horas mais difíceis, incrível como só aparece quando tudo ao meu redor parece querer me destruir. Sua voz é sempre imperativa, impositiva, confessei ao médico, e ele não aceitou, pelo simples fato de não o enxergar, de não ouvir sua voz, o médico usou desse pretexto e me internou, usando de violência, choques, camisas de força, como se eu fosse um criminoso, um terrorista. Essa recordação guardo comigo.
E durante meu período de prisioneiro naquele hospital, não ouvi mais sua voz, intimidou-se diante de tamanha tortura contra minha pessoa. Nossa amizade não foi mais a mesma, quase não me visita mais, não fala mais comigo, e eu sigo meu destino. Um tempo depois ele voltou a conversar comigo e me ajudou a fugir daquele hospital, ninguém sentiu a minha falta, nem me procuraram e levo a vida dessa forma nômade e ermita.
IV
Aos 74 anos, diferentemente dos 20, nosso espírito carrega nosso corpo e as nossas vontades são mais fisiológicas que mentais.
FREDERICO AREBELOT, 02-2021

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